quinta-feira, 12 de março de 2009

Sem Sentido

- Hei, olha ali, Nosen. É o Ronaldo! – Gritou Suzy.
- Oh! Sim, eu o conheço. – Respondeu Nosen sem esboçar muita emoção.
- É claro que você conhece, todo mundo conhece! Pode-se dizer que ele é a pessoa mais famosa do mundo! Meu Deus, isso é fantástico! Vamos atrás dele pedir um autógrafo.
- Suzy, por que você quer um autógrafo?
- Cara, você está louco?!? Ronaldo é a maior estrela musical que o mundo já conheceu, o maior ídolo de todos os tempos... Nem Jesus foi tão idolatrado!
- Sim, eu sei... Mas e daí? Eu não estou entendendo...
- Nosen, o acidente que você sofreu deve ter te afetado mais do que os médicos puderam perceber. Você está cogitando que a gente deixe passar a oportunidade de falarmos com Ronaldo Futeiro?!?
- Bem... Olha, eu to falando sério. Culpa do acidente ou não, o fato é que eu não estou entendendo por que deveríamos falar com ele. Sério! O que tem de tão especial nisso?
- Cara, você ta pirado. Vamos lá, vamos!
- Não! – Exclamou Nonsen, um pouco alterado - Eu não vou correr atrás desse cara sem nem entender o porquê.
- Ai meu Deus, eu não acredito. Isso não ta acontecendo...
- Suzy! Mostre um pouco de respeito. Você sabe que eu sofri um acidente grave e há alguns meses eu sequer reconhecia meu rosto no espelho. Sei lá... Eu só estou achando isso sem sentido.
- Ok! Mas faça me faça um favor então, mesmo não entendendo, vem comigo, por favor.
- Ta bom. Mas com uma condição: depois que a gente conseguir o autógrafo dele, você me explica por que isso é tão importante.
- Ok! Vamos! – Respondeu Suzy exaltada.
Após muito esforço e algumas cotoveladas, Suzy conseguiu o tão sonhado autógrafo. Nosen havia ficado realmente intrigado com tudo aquilo. Não conseguia entender por que as pessoas estavam tão enlouquecidas por um autógrafo. Algumas se contentavam apenas em poder tocar o superstar, e outras pareciam em estado de êxtase religioso quando conseguiam a atenção do ídolo. Nosen sabia que um dia também agira daquela maneira, mas não conseguia entender nem lembrar o porquê. Com certeza sua incapacidade de compreender de imediato o sentido daquela situação tinha a ver com alguma seqüela do acidente, que deixou algumas lesões em seu cérebro. Agora aquilo tudo parecia totalmente sem sentido, e ele estava interessado em entender. Após um tempo, longe da confusão, ele teve sua chance:
- Então, Suzy, agora você pode me explicar o que foi aquilo?
- Bem, Nosen. Parece tão óbvio que é até difícil explicar. Deixe me ver... Bem... Ronaldo Futeiro é alguém especial, sabe? Todo mundo conhece ele...
- Sim! Eu sei. Ele é uma estrela... E, como uma estrela, todo mundo pode vê-lo. Todos o conhecem... Mas eu não consigo entender por que isso o torna tão especial... Tão admirável. – Retrucou Nosen com a honestidade de uma criança.
- Bem, sabe quando alguém fala sobre uma pessoa para você, fala tanto que você acaba ficando realmente curioso para conhecê-la? É assim... Ronaldo é tão conhecido, que eu realmente gostaria de conhecê-lo! Digo, conhecê-lo pessoalmente, entende? Todo mundo conhece ele, fala sobre ele. Eu acho que ele deve ser uma pessoa realmente maravilhosa... Uma pessoa única, sem igual, especial!
- Hmmm... Eu acho que todo mundo é único, Suzy. Mas enfim... Quer dizer então que, pelo fato de todos conhecerem-no, ele deve ser alguém muito especial?
- Sim! Senão ele jamais seria tão conhecido... Não é óbvio?
- Pode ser. Mas e se ele não for tão especial, nem maravilhoso. E se ele for só um cara cheio de defeitos e poucas qualidade, que foi exposto por muito tempo às lentes das câmeras?
- Nossa! Nem pensar...
- Porque “nem pensar”? – Indagou Nosen, cada vez mais intrigado.
- Nosen, esse cara é um ídolo! Você acha mesmo que ele seria um ídolo se fosse um cara simples cheio de defeitos e poucas qualidades?
- E quais são as qualidades dele?
- Ele canta bem.
- Ok. Ele canta bem, mas não melhor que a maioria dos cantores. Que mais?
- Hmmm... Sei lá! Eu não conheço ele!
- Quer dizer que porque ele é um ídolo, você assume que ele é o modelo de Homem, cheio de bons exemplos para dar e qualidade para serem admiradas?
- Não! Eu só acho que ídolos não devem ter defeitos... Ou se tiverem são poucos... Senão não deveriam ser ídolos. Entende?
- Entendo. Ídolos são pessoas especiais, admiráveis e dignas de apreço e louvor. É por isso que são ídolos: por terem qualidades que a maioria das pessoas não tem. Correto?
- Isso mesmo! – Exclamou Suzy, acreditando ter chegado ao fim da conversa.
- Mas você disse que não conhece Ronaldo o suficiente para listar suas qualidades... – Nosen não estava disposto a dar a conversa por encerrada enquanto não entendesse bem a questão.
- Bom, talvez você tenha razão. Eu presumo que, por ser um ídolo, Ronaldo é alguém admirável e especial, mas a única coisa que realmente sei é que ele é conhecido por todos, e todos o admiram. Hmm... Acho que você está tentando me confundir, Nosen.
- Eu só estou tentando entender... – Respondeu.
Suzy coçou a cabeça perdida em seus pensamentos. Ela nunca havia refletido sobre essas coisas, e agora parecia entender melhor o ponto de vista de Nosen do que ele entendia o seu.
- Olha, cara, eu não tenho como provar que Ronaldo é alguém tão especial, a não ser pelo fato de todo mundo achar isso. Mas, pensa bem, será que bilhões de pessoas podem estar erradas? – Perguntou Suzy, um pouco mais interessada.
- Você acha improvável que bilhões de pessoas pensem assim, dessa mesma forma? Talvez estejam todos olhando uns para os outros procurando saber o que a maioria pensa, para então concluir: “Bom, tantas pessoas não podem estar enganadas!”. Olhe essas pessoas que passam na rua, provavelmente todas elas conhecem o Ronaldo Futeiro, mas alguma delas o conhece o suficiente para garantir que ele é uma pessoa realmente especial? Um ser humano de qualidades raras e incomuns?
- Ok! Você tem razão... Tudo que eu sei é: ele é especial porque é famoso. Só!
- Ainda assim não entendo. O que a fama tem demais? – Questionou Nosen.
- Ah! Pode-se conseguir muitas coisas com a fama: influência; poder; admiração...
- Bom, eu concordo com isso. Mas aí me surge outra dúvida: alguém deveria ter influência, poder e admiração por causa da fama, ou, ao contrário, ser famoso justamente por causa da sua influência, poder e por ser alguém realmente excepcional?
- Ser famoso, por si só, já é uma conquista admirável, eu acho. – Respondeu Suzy.
- Parece que sim... E parece que você não é a única que pensa assim. Eu acho que estou começando a entender. Ao que tudo indica, a fama é justificativa suficiente para admiração incondicional da maioria das pessoas. Não é?
- É. Acho que sim.
- Engraçado... Pelo que você me diz, parece que se todos os olhos e lentes do mundo se voltassem por tempo suficiente para uma pessoa desprovida de qualquer qualidade ou virtude, logo essa pessoa ficaria famosa e isso seria suficiente para que ela fosse vista como alguém de poder, influência e qualidades excepcionais.
- Talvez você tenha razão... - Comentou Suzy.
Um carro pára na frente de um hotel cinco estrelas do outro lado da rua. Dele desce uma mulher deslumbrante que chama a atenção de todos. Nosen olha para Suzy que, ao perceber a mulher, entra em êxtase.
- Olha! É Oprah Kharallo!!!
- De novo não... – Resmungou Nosen, decepcionado.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Easy come, easy goes

É trágica aquela clássica cena do homem desesperado implorando o amor de sua amada dizendo que faria qualquer coisa por ela, que mataria e que morreria se fosse preciso. Ele tem certeza que ninguém vai amá-la mais do que ele a amou, e que ninguém jamais será capaz de fazer tudo que ele faria por ela. Então, por que ela não reconhece isso? Porque ela o despreza? A explicação para essa triste cena está nos nossos genes.

Somos programados para valorizar e voltar nossa atenção àquilo que nos falta, e, cuja ausência, ameaça nossa sobrevivência e bem estar. É uma lógica muito simples, porém eficiente e econômica. Necessitamos de uma série de coisas para sobrevivermos: água, ar, comida, abrigo, afeto, etc. E precisamos de todas elas em diferentes graus. Tente imaginar a melhor maneira de administrar essas necessidades essenciais. O que é mais importante que o quê? A qual delas deve ser dada maior atenção? Você pode imaginar o quanto quiser, e vai concluir que a maneira mais econômica e eficiente de se administrar essas necessidades é dando atenção primordial àquelas que ainda não estão sendo supridas. Aquelas que já estão supridas não representam um perigo imediato à sobrevivência, portanto o melhor a fazer é voltar-se àquelas que ainda o são. E a evolução da nossa espécie entendeu isso. Assim, compreende-se o porquê não damos valor ao ar que respiramos, por exemplo. Pense: quando foi a última vez em que parou, deu uma profunda inspirada e refletiu no quanto o ar que você respira é a coisa mais importante em toda sua vida? Podemos sobreviver dias sem afeto, abrigo, comida e água, mas mal podemos ficar um minuto sem ar. Ele é, sem dúvida, a coisa mais importante que existe para nós. Importante, mas sem valor.

Esse caminho que a seleção natural percorreu parece ter nos programado para uma administração de necessidades eficiente, econômica, mas com um estranho efeito colateral. Já tentei definir o conceito “importância” no parágrafo anterior. A importância de uma coisa que necessitamos esta relacionada com a magnitude do impacto negativo que a ausência desta terá em nossas vidas. O ar é mais importante que a comida porque a ausência dele tem um impacto maior e mais imediato na nossa sobrevivência e bem estar. Valor é definido aqui de uma forma diferente. O ar não é tão valioso quanto a comida porque o ar é muito mais disponível e abundante. Apesar de importante, ele não é valioso. A nossa forma natural de administrar necessidades nos fez criar uma espécie de peso para cada uma delas. Um valor. Esta forma de avaliar as coisas não está relacionada com sua importância real, mas com sua disponibilidade. Fomos programados para ocupar a mente com aquilo que nos falta. Os recursos que pensamos ser infinitos não têm nosso apreço. Estarão sempre lá.

Hoje batalhamos por nossa sobrevivência mês a mês. Um salário garante isso para a maioria das pessoas. Há milênios atrás as coisas eram bem diferentes. Éramos pressionados a reagir às contingências do ambiente de forma eficiente e econômica, talvez por isso desenvolvemos esta maneira de administrar nossas necessidades. O que realmente importava era aquilo que ameaçava nossa sobrevivência de forma mais imediata. Hoje a maioria das pessoas tem garantidas as suas necessidades mais importantes sem precisar correr com uma lança por ai atrás de animais selvagens. Creio que essa mudança radical no nosso ambiente tenha permitido a manifestação dos efeitos colaterais do nosso modo de administrar necessidades. A tendência natural é que o valor das coisas tenha um peso maior nas nossas decisões do que sua importância. O valor, definido pela escassez, rege nossa preferência por este ou aquele recurso. Um recurso raro nos é mais atraente que um recurso abundante. Desejamos mais o que é escasso ao que é muito disponível. Um diamante desperta muito mais nossa vontade de possuí-lo do que a água. Aqui caímos em um conceito da economia, mas cuja origem creio estar na nossa maneira de funcionar, determinada pela nossa evolução e escrita em nossos genes.

Lembro de um episódio de Duck Tales que exemplifica bem o que quero dizer. Tio Patinhas, o pato rico, deixou cair acidentalmente sua moeda da sorte de um avião enquanto viajava. A moeda foi parar numa ilha em que habitavam selvagens que nunca haviam tido contato com o mundo “civilizado”. Pois bem, o selvagem que encontrou a moeda logo tornou-se o rei da ilha, pois todos consideravam que ele possuía algo divino. A moeda, única, passou a ser cobiçada por todos que pretendiam tomar o lugar do rei. Logo a ilha virou uma confusão. Tio patinhas, ao chegar na ilha, viu a confusão e logo descobriu a maneira de resgatar sua moeda e restaurar a ordem. Mandou um avião despejar milhares de cópias da sua moeda na ilha. Assim, todos passaram a possuir uma “moeda divina”, e, portanto, sua posse deixou de representar algo especial. Tudo voltou ao normal.

Precisamente este é o efeito colateral ao qual me refiro quando digo que nossa maneira de administrar necessidades tomou um caminho estranho. Pensar em termos de valor (muito mais do que importância) nos levou a ultra-estimar algumas coisas apenas pelo fato de serem escassas. Isto basta para que elas sejam desejadas por todos e confiram poder social ao possuidor. Volto a citar as jóias (como o diamante, por exemplo), elas não favorecem de forma alguma nossa sobrevivência ou bem estar, a não ser em contexto social onde muitas pessoas as valorizem. O poder de uma jóia é, portanto, virtual. Existe somente na mente das pessoas. Já a água, por exemplo, com toda sua abundância, sustenta toda vida no planeta. Tem poder real sobre a ela.

Retomando a pergunta inicial deste texto, porque uma mulher desvalorizaria um homem que a oferece tudo que tem, material e afetivamente? A resposta é: tudo que está disponível e em abundância não tem nosso especial apreço, não nos chama atenção. É assim que funcionamos. Claro que isto não explica totalmente a complexidade das relações sociais, onde inicia a atração entre duas pessoais e como ela se desenvolve. Mas acredito que ao menos parte da questão inicial deste texto possa ser explicada através do princípio de valor x importância. Tudo que nos é garantido não precisa da nossa atenção ou apreço, mesmo que estas coisas sejam juras de amor. O valor destas juras está na sua disponibilidade. Ela esteve e sempre estará lá, ou ela é algo que precisa ser conquistada a algum custo? Assim será definido o seu valor. Alguém que doa de forma generosa e sem restrições todo seu amor muito cedo em uma relação, antes mesmo de se certificar que existe uma reciprocidade, está sob sério risco de protagonizar a triste cena descrita no inicio deste texto.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Amor é tudo?

Muitos "te amo" foram ditos através da história da humanidade. Bilhões talvez.
Casais apaixonados, amantes, amores... Alguns vingaram, outros terminaram, mas o "te amo" passou por eles todos. Dizemos tanta coisa com apenas essas duas palavras. Elas podem significar tudo para algumas pessoas. Pode dar sentido a vidas. Pode ser uma futilidade ou até mesmo nem existir na opinião de outros. Uma frase curta e poderosa. Todos querem ouví-la, mas, afinal, o que estamos dizendo quando proferimos essas duas palavras mágicas?

"Te amo" diz respeito apenas a um sentimento: o amor. Este, como definido por Freud, é o que nos faz querer ficar próximo de alguém (ou de alguma coisa). A pessoa amada é como o calor que nos aquece em uma noite gelada. Sentimos que precisamos dela. O amor é o que nos direciona à união. Esta é a sua função. No entanto, essa é a parte mais fácil de um relacionamento: “ficar juntos”. Nos primórdios da nossa evolução enquanto espécie esta era a única coisa importante: "ficar" e reproduzir. Simples. Disto o amor sempre se encarregou...

Porém, permanecer juntos é complicado. E, ao contrário do que muitos pensam, amar não garante uma série de outras coisas importantes como respeito, cumplicidade e lealdade. Desejar ardentemente ficar com alguém não garante de forma alguma que a relação com essa pessoa dará certo com o passar do tempo. E, mais uma vez ao contrário do que se pensa, o amor não é o mais importante em uma relação. Querer ficar próximo de uma pessoa, querer o bem dessa pessoa, não é nada se não há um profundo respeito por este alguém. Poderia citar inúmeras atrocidades que se pode cometer por amor quando o respeito falha. E não adianta dizer que não existe amor sem respeito, pois, como disse, são duas coisas diferentes e uma não garante a outra. Talvez a grande ingenuidade de muitos em seus relacionamentos seja justamente esta: pensar que amor e respeito andam sempre juntos, e que para isso não é necessário que se faça esforço algum. Este é um engano que custa caro no final.

Respeito é um conceito um tanto esquecido atualmente. Pouca gente trata de fazer desse conceito um costume. Escuto muito falar da importância da liberdade, do amor, da justiça. E o respeito fica lá, tímido no seu canto. Ele não é muito popular. "Onde está o amor?" é uma pergunta que todos gostariam de ver respondida. Eu responderia: está em todo lugar. O que não se percebeu ainda é que não é o amor que está faltando. Tanto o sucesso dos relacionamentos afetivos quando o agradável convívio social dependem grandemente do respeito. Um engano profundamente lastimável é a crença comum de que a frustração e a irritação do dia-a-dia justificam sua falta. Ser xingado no trânsito por alguma "barbeiragem" não faz nenhum mal verdadeiro a ninguém, porém ser xingado com palavras grosseiras, por exemplo, pela pessoa que amamos não se justifica por nada. Todo problema em um relacionamento pode ser resolvido de forma pacífica, desde que exista a disposição de ambas as partes em ceder um pouco. Respeito também é isso: a disposição para ceder um pouco. A filosofia "Eu quero tudo e quero agora!" da nossa sociedade tem nos deixado bastante egoístas em nossos relacionamentos. Queremos que o outro nos de tudo de si, mas não estamos tão dispostos a fazer o mesmo. Queremos receber, trocar é mais difícil. No entanto, respeito não se dá nem se recebe: se troca. Eu te dou o meu enquanto você me dá o seu. E é assim que os relacionamentos costumam dar certo e perdurar: ENQUANTO houver essa troca.

O amor é obviamente muito importante. É ele que cria os laços afetivos entre as pessoas, porém talvez ele seja superestimado. Ele não é tudo em um relacionamento, seja este qual for: entre pais e filhos; entre irmãos; entre amigos ou entre casais. Se o amor é a semente de uma união, o respeito é a terra em que ela crescerá forte. Quando o respeito seca, o amor morre. O que resta é uma união pobre mantida por inércia ou conveniência. Quando fizermos declarações do tipo "te amo e sempre te amarei" é melhor pensarmos como anda a qualidade da terra em que cultivamos nosso amor. Respeito é tudo!

domingo, 9 de setembro de 2007

Homo Opulentus (ou como tornar-se rico)

Há muito, muito tempo, houve uma tribo chamada Comunus, constituída de apenas algumas poucas pessoas. Inicialmente eles viviam da caça e da coleta natural, mas com o advento da tecnologia agrícola, sentiram a necessidade de dividir seu espaço de modo igualitário para que todos pudessem plantar, colher e prosperar. “Trabalho” era uma palavra relativamente nova em seu vocabulário.

O espaço da tribo havia sido dividido em partes iguais: alguns lotes de cultivo para as pessoas normais, e um espaço para os “moderadores”. Os “moderadores” eram cinco tribais que haviam sido designados para mediar os conflitos surgidos entre os habitantes depois da nova organização das terras. Ninguém sabe muito bem de onde surgiu essa idéia, o fato é que no momento em que as pessoas tiveram que se organizar em lotes, alguém tinha que manter a ordem para que uns não invadissem o espaço de outros. Pode-se dizer que os “moderadores” faziam vigorar algo parecido com aquilo que chamamos hoje de justiça formal. A diferença é que na tribo havia apenas umas poucas leis, bem poucas de fato: cada lote de terra era representado por um objeto, e o possuidor daquele objeto era o dono do lote que o objeto representava; o objeto específico poderia ser passado adiante, significando assim a transferência do lote para a pessoa que recebesse o objeto. Eles chamavam esses objetos de Eumignas. O trabalho dos “moderadores” era, então, relativamente simples. Garantir que ninguém invadisse o lote alheiro, e realizar a cerimônia oficial de transferência de Eumigna entre os tribais. Um lote de terra só podia ser transferido com a presença dos “moderadores”, que garantiriam a legitimidade do processo.

As coisas até que iam bem nessa nova organização. Os “moderadores”, em seis anos de existência, haviam realizado uma única transferência de lote. Cada um dos lotes abrigava uma pessoa que tirava dali sua completa subsistência, e, portanto, não havia muitos motivos para que alguém quisesse transferir sua estimada propriedade.

Certo dia um dos tribais, chamado Hombug, teve uma idéia que considerou revolucionária, uma idéia que poderia mudar sua vida completamente. Ele percebeu que alguns dos habitantes, assim como ele mesmo, não estavam muito satisfeitos com essa nova organização. Achavam o trabalho agrícola muito monótono e cansativo. Percebeu também que eles tiravam da terra apenas o necessário para sobreviver (algo muito aquém do que a terra podia oferecer). Resolveu então trabalhar arduamente no seu lote de terra... Constatou que de fato a terra poderia dar muito mais do que ele precisava para sobrevier. Começou então a acumular. Em pouco tempo tinha acumulado muito mais do que poderia consumir em um ano inteiro. Trabalhou mais um pouco e concluiu que era o suficiente. Pensou que havia chegado a hora de por em ação o maravilhoso plano e fez então sua proposta a um dos tribais mais insatisfeitos: daria a ele tudo o que tinha colhido. O suficiente para um homem viver mais de um ano sem trabalhar. Em troca queria o seu lote, apenas o seu lote. O homem pensou que era um bom negócio, afinal, não ter mais que trabalhar por um bom tempo e era tudo o que ele queria desde a nova organização. Foi então que os “moderadores” realizaram a segunda cerimônia de transferência de lote da história da tribo, e Hombug se tornou o primeiro homem da tribo a possuir mais de um lote só para si. Mas afinal, para que ele queria mais um lote se detestava trabalhar? O fato é que continuou trabalhando ainda mais do que antes...

Não demorou muito para que a comida do homem que havia “vendido” o lote estragasse, e ele reclamasse seu lote de volta, porém os “moderadores” estavam lá para garantir que a lei fosse mantida. Hombug fez então outra proposta para o homem desesperado:

- Você pode voltar a trabalhar no seu antigo lote, porém com uma condição: metade do que produzir será meu! – O pobre homem não tinha mais o que comer, e estava sem alternativas. Teria que voltar a trabalhar, e agora ainda mais do que antes.

Não levou muito tempo até que Hombug descobrisse uma maneira de escoar seu excesso de produção para outras regiões, estabelecendo a primeira via comercial de sua tribo. Os tribais começaram a invejar as jóias e mercadorias exóticas vindas de outras tribos diretas para seu lote de terra, e assim ele deu seus próximos passos: oferecia móveis, jóias e coisas que antes os tribais sequer imaginavam existir em troca de uma coisa pequena e simbólica: Eumignas. Eles passariam sua posse da terra e uma parcela de sua produção mensal para Hombug, e em troca receberiam muitas daquelas coisas que desejavam tanto.

Uma nova organização se estabeleceu e a tribo prosperou. A tecnologia trazida de outras tribos por Hombug promoveu um aumento significativo no conforto geral da tribo. Todos trabalhavam mais do que antes, mas já não reclamavam tanto, afinal todos viviam em casa grandes e confortáveis, bem diferentes daquelas de antes. Todos tinham acesso a coisas até pouco tempo inimagináveis, vindas de lugares desconhecidos. Ninguém entendia muito bem porque a casa de Hombug era incomparavelmente maior que a de todos os outros, e nem o porquê, por mais que todos trabalhassem muito, permanecia a impressão de que Hombug possuía mais riquezas do que todos tribais juntos. Na verdade, depois de um bom tempo, até esqueceram das Eumignas e para que elas serviam, apenas Hombug e os “moderadores” tinham plena consciência de sua existência e significado. A propósito, os “moderadores” sabiam que algo não estava certo... mas cumpriam o seu dever. Afinal, com todo o conforto que Hombug os propiciava, não tinham do que reclamar.